Trajetória e desenho de CACO

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Energia da criança. É um pátio, um quintal, um ambiente externo. Estamos todos brincando de cabra-cega. No momento em que tiram o capuz do meu rosto, a brincadeira fica séria. Só tenho olhos para ele, que está na minha frente. Ele ri e eu tremo. Começa o jogo sério do “ia ter” e o jogo sério da declaração. Para mim, este material é uma evidente declaração de amor. Começo CACO com uma declaração de amor sincera e termino CACO com a tentativa sincera de uma declaração de amor.
Neste material, tem: olhar fixo, mão direita que não pára, dedo que encontra short, tensão, dificuldade, coração acelerado, falta de ar, palavras que saem com dificuldade, palavras que saem involuntariamente, suspensão.
Este material ocorreu na infância, talvez a primeira (e última) manifestação da homossexualidade na vida do personagem. De fato, me parece que esta experiência foi forte o suficiente para ele querer construir uma CASA, uma família, um lar como todos os outros amplamente divulgados como modelos: com pai na cabeceira da mesa, mãe fritando os ovos e filhos comendo sucrilhos.

- ‘Vamos ficar na amizade ? Não te quero ou não te posso mas te gosto.’
- ‘Ficar perto e não querer é impossível. Melhor ficar longe’
- outra tentativa de, ainda sim, ficar perto\junto
- confirmação da distância
- o que eu gostaria que tivesse acontecido mas não aconteceu ? Se eu tivesse tido espaço, teria corrido pros seus braços e ?

Energia do adulto. São 2 corpos que se encontram, se grudam e dificilmente se desgrudam. É parto ? É sexo ? É encontro. Dali, nasce meu bebê\meu bebezinho. Relação pai e filho que começa a ser vivenciada. É o amor, o carinho, o afeto, a beleza de todas as noites. O sono tranqüilo do meu anjinho. Durante o texto da Bel, vejo a transformação do meu bebê em um jovem adolescente. Incapacidade de lidar com aquilo que o meu bebezinho é agora. O crescimento dos filhos desespera os pais. O carinho vai ficando cada vez menos intenso e a mão vai se desgrudando do cafuné no filho. Meu corpo muda. Passaram-se alguns anos em poucos segundos. Estamos frente a frente: eu e Bê. Esta imagem antecipa o passado que volta à tona. Tenho um duplo que é parte de mim mas que nunca foi meu (mas que fala tudo que eu falo). Meu filho agora quer uma boneca e eu, alguns muitos anos antes, quis um amigo da escola. Me vejo no meu filho e isso me desespera. Se não soube lidar com isso na minha vida, como lidar com isso na vida do meu filho ?

- Vamos fingir que nada aconteceu ? Eu finjo que nunca amei um Homem e você finge que gosta de futebol, OK ?

Conversar com o filho é voltar ao passado. Tentativa sincera de mostrar que está tudo OK. A conversa começa branda mas o tom vai subindo, chegando ao descontrole emocional. O pai disse aquilo tudo para o filho ou para si mesmo ? O filho representa a volta de um passado e o desvelar de uma poeira que estava por baixo do tapete mas que sempre fez a CASA toda espirrar. Enquanto me arrumo pro trabalho, vejo meu filho no banheiro. Ora se maquiando ora se barbeando. Simultaneidade dos opostos. Espelho. Jonathan tem 2 pais ou nunca teve nenhum ? Reflexo. E eu, como fico ? Vou viajar.

Peso. Entro segurando todos aqueles teóricos e eles pesam demais. Não importa se é homem ou mulher, seguro todos com meus braços magros e povôo o espaço com aqueles nomes que são presença físicas. Boto cada um no seu devido lugar. E qual é o devido lugar de cada um deles na minha vida ? Peso do saber, peso do conhecimento, olha o tanto que a gente precisa saber para ser ator\artista, quantas paredes, quantas páginas, quantas referências, qual a relação entre teoria e prática ?, me cansa falar todos eles e ter que lê-los para ser alguém, fazer a prova, tirar 10 e passar de período. E se eu não quiser ler o que todos escreveram mas sim apenas produzir a partir do hoje, será que posso ? Agora, posso.. estou no domínio do jogo. Eu sou o dono da situação. Eu sou Deus e faço todos pararem quando eu quiser. Basta eu dizer a palavra-chave. E eu digo. E repito. E eles são quase marionetes. O actor e sur marionette, escreveu um deles. E eu posso tudo. Eu sou Deus. Ou Picon-Vallin. Ou Bernard Dort. Ou Pavi. Parede !

Preciso contar para minha mãe que sou gay. Os pés falam e o olhar também. Meus pés batem num ritmo cadenciado que não se compara ao ritmo do meu coração neste momento. Angústia, medo, não sei por onde começar, não quero te fazer sofrer, é difícil pra caralho, não foi uma escolha.

Quem canta seus males espanta. Família toda reunida, parentes, celebração. “O importante é que você tá vivo, é bonito, tem talento, é bonzinho, tem uma vida inteira pela frente, é jovem, tem saúde.. pare de pensar em bobagens e vamos pedir pro Senhor derramar sobre você o amor Dele.”

Como se faz uma trança embutida ? Quem tem cabelo liso assim como o meu também consegue, Bel ? E a minha franja, como fica ?

Estamos todos ouvindo a palestrante até que um dos ouvintes se manifesta e endossa o discurso sobre a “nova família”. É o marido sabe-tudo\ personal hapiness at home for wives. Os 10 passos para a felicidade na CASA. Acredita no que diz, fala os maiores absurdos sem intencioná-los.

O personal hapiness at home for wives já encontrou a sua wife. Há alguns muitos anos atrás. Num bailinho. Na verdade, ele foi escolhido por falta de opção. Comercial de margarina, momento grude e mela-cueca.

Enquanto o personal hapiness at home for wives faz o papai-mamãe com a sua wife, o vizinho da frente tem uma performance sexual surpreendente. Admiração, desconforto, incômodo, inveja, despeito.

- Olha, o senhor vizinho da frente que me desculpe mas eu acho o acasalamento das borboletas muito mais bonito que esta cena grotesca que acabei de ver. Olha que lindo, as 3 fêmeas e o macho dançando o amor ! Como se dança ?

Ainda de frente com a minha mãe. Ainda não consegui falar mas a tensão está maior. Será que preciso mesmo dizer que sou gay ? Você já sabe, para que ter que falar ? Meu corpo todo reverbera a angústia, a ansiedade. Está na ponta da língua, na iminência de se dizer. Quando vou falar, “chega, vamos passear !”

O passeio aqui em CASA são os compromissos da convivência doméstica. Estou estendendo as roupas da mesma mulher que vai me pedir uma declaração de amor mais adiante e sou o mesmo pai da CASA cujo filho brinca de boneca. Dia-a-dia de uma vida de casado, a monotonia de um casamento fracassado. Estender calcinhas da sua mulher pode ser considerada uma declaração de amor ?

A importância do feminino na minha vida inventada. A mulher na minha vida. Olha que lindo como elas batem o bolo, tiram a sujeira da coxa, tiram o batom da boca, se olham no espelho e correm para pegar o táxi. Será que eu gosto tanto de mulher que gostaria de ser uma ?

Foto da minha família construída: Primeiro momento, eu e minha mulher, ao fundo. Segundo momento, eu levando a minha filha ao altar. “ (...) Porque você é a mãe dos meus filhos (...)”.

Agora se entra no estado da perda. A minha relação com o balde já comunica (está por um fio ? É a última coisa que falta quebrar ?). Falo da minha vida, do que quebrou e não volta mais. São as perdas que me constituem. Sou feito de perdas. As perdas da minha trajetória que me levam até o presente momento da peça e da vida. Para mim, este material e a terceira mesa são os momentos que mais vejo a anulação de um possível personagem. Óbvio que tem um estado diferente que não é o mesmo da vida cotidiana mas quero realmente olhar nos olhos da minha mãe e falar da minha sexualidade como também falar sobre tudo aquilo que quebrou na minha vida e não volta mais. Como se fica depois do vômito de palavras ? Como se fica depois que se fala de traumas e perdas ?

Outra foto. Mas esta não está no álbum da família. Eu entre Bê e Tei. Seria esta foto a imagem da minha trajetória na peça ? Eu entre o amor amigo e escondido da infância e eu entre a mulher que me deu filhos, família, CASA. É a minha divisão interna exposta. Bê me toca e eu toco a Tei. O passado me toca e eu, a contra-gosto, toco o presente. É a foto da vida inventada. É a foto de dentro. É uma radiografia.

Lugar do desconforto, da incomunicabilidade. Busco diálogo e não consigo. No mesmo ambiente estão Bê e Tei. É muito forte. Saio daquele lugar que não me escuta mas que eu escuto. Procuro alguém que me ouça.

Estou de frente pro espelho ? Mesmo espelho que o Jonathan usa para se barbear e se maquiar ? Só eu me escuto, sou o único interlocutor possível ? O que é o coelho ? A vida inventada ? O amor perdido ? “Estava tudo pronto.” - só dependia de mim. “Pensei em galinha, peixe, pato, gato..” - quais são as opções possíveis para eu me esconder dos Homens ? O coelho é a mulher na minha vida ? O coelho é o disfarce, a mentira, a recusa em se assumir gay ? Ou o coelho é o amor que não tive coragem de lutar ?

A mãe dos meus filhos e minha mulher pede uma declaração de amor. Mas eu não sou capaz de satisfazê-la. Só falo em números. Me prendo à quantidade e não à qualidade. A declaração é meramente enumerativa. É clara a tentativa e a impossibilidade de amar aquela mulher. Há carinho, amizade, consideração.. mas amor\tesão\paixão não há nem nunca houve. E a CASA percebe isso mesmo que se tente esconder. Minhas palavras não convencem nem têm que convencer. É uma tentativa sincera de se gostar e de dizer que se gosta.

Nos beijamos. Nosso último beijo. Talvez por ser o último, seja o primeiro beijo bem dado e de verdade. É o beijo de despedida e de desculpas. Meu personagem acaba. A trajetória dele termina. Com ele, acabou também o amor da infância, o casamento fracassado, o filho que quer boneca e a dificuldade em se assumir gay.

O que meu personagem não teve coragem de dizer a vida toda, eu consigo dizer, enfim, para a minha mãe: “Eu sou gay. Seu filho é gay !”




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